O uso de mascaramento para reduzir o viés na avaliação dos desfechos de tratamentos
Em alguns desfechos usados para avaliar um tratamento, sobrevivência, por exemplo, uma avaliação com viés é muito pouco provável porque há pouco espaço para discussão. Este foi o caso em alguns experimentos de procedimentos cirúrgicos do século XVIII, quando a sobrevivência era a principal medida de sucesso ou fracasso do tratamento (Faure 1759). A avaliação da maioria dos desfechos, entretanto, sempre, ou quase sempre, envolve subjetividade (como no caso dos sintomas dos pacientes). Os vieses que levam a essas impressões equivocadas são chamados de vieses do observador. Eles podem causar problemas quando as pessoas acreditam que já ‘sabem’ o efeito de um tratamento, ou quando possam ter motivos específicos para preferir um dos tratamentos comparados. Quando não se tomam medidas para reduzir as avaliações dos desfechos com viés nas comparações de tratamentos, os efeitos do tratamento tendem a ter uma avaliação supervalorizada (Schulz et al. 1995). Quanto maior o elemento de subjetividade na avaliação dos desfechos, maior a necessidade de reduzir estes vieses do observador para garantir experimentos controlados dos tratamentos.
Nestas circunstâncias comuns, o ‘mascaramento’ dos pacientes e dos médicos é um elemento desejável dos experimentos controlados. A primeira avaliação cega (mascarada) de um tratamento parece ter sido realizada por uma comissão de inquérito indicada por Luís XVI em 1784 para investigar as afirmações de Anton Mesmer sobre os efeitos do ‘magnetismo animal’ (Commission Royale 1784). A comissão avaliou se os supostos efeitos deste novo método de cura se deviam a qualquer força “real”, ou a ‘ilusões da mente’. Foi dito às pessoas, que tinham seus olhos vendados, que elas estavam recebendo ou não magnetismo quando de fato, às vezes, o contrário estava acontecendo. As pessoas que estavam sendo estudadas sentiram os efeitos do ‘magnetismo animal’ somente nos casos em que lhes foi dito que elas estavam recebendo o tratamento, do contrário não (Kaptchuk 1998; Schulz et al. 2002).
O uso de placebos para atingir o mascaramento
Alguns anos após os testes dos efeitos do magnetismo animal, John Haygarth realizou um experimento usando um dispositivo simulado (um placebo) para atingir o mascaramento (Haygarth 1800). A charge que acompanha esta parágrafo mostra um médico tratando um paciente saudável com um dispositivo patenteado e comercializado por Elisha Perkins. Perkins afirmava que seus ‘ tractors ’ – pequenas varetas de metal – curavam uma variedade de doenças através da ‘força eletrofísica’. Em um folheto intitulado ‘Of the imagination as a cause and as a cure of disorders of the body: exemplified by fictitious tractors’ (Da imaginação como uma causa e uma cura das desordens do corpo:exemplificado pelos “tractors” fictícios), John Haygarth relatou como ele submeteu as afirmações de Perkins a um experimento controlado. Em uma série de pacientes que não sabiam dos detalhes de sua avaliação, ele usou um estudo cruzado para comparar os tractors metálicos patenteados (os quais deviam funcionar através da ‘força eletrofísica’) com ‘tractors’ de madeira que idênticos aos originais (‘tractors placebo’). Ele foi incapaz de detectar qualquer benefício dos tractors metálicos (Haygarth 1800).
O experimento controlado de John Haygarth dos tractors de Perkins é um exemplo precoce do uso de placebos para conseguir um mascaramento para reduzir os vieses na avaliação do desfecho dos tratamentos. Os placebos se tornaram uma ferramenta de pesquisa nos debates sobre homeopatia, outra importante forma de cura não convencional do século XIX. Os homeopatas em muitos casos usaram a avaliação cega e controles com placebo em suas “provas”, que testavam os efeitos dos seus medicamentos em voluntários saudáveis (Löhner 1835 ; Kaptchuk 1998). Um dos experimentos controlados por placebos mais sofisticados ocorreu na Milwaukee Academy of Medicine (Academia de Medicina de Milwaukee) em 1879-1880. Este estudo era do tipo ‘duplo-cego’: tanto os pacientes quanto os experimentadores ficaram alheios em relação a se o tratamento era um medicamento homeopático verdadeiro ou uma pílula de açúcar (Storke et al. 1880).
Somente muito mais tarde que uma atitude mais cética na comunidade médica levou a um reconhecimento de que havia uma necessidade de adotar avaliações cegas e placebos para avaliar a validade das suas próprias asserções. Inspirados principalmente por farmacologistas, pesquisadores alemães foram adotando gradualmente as avaliações cegas. Por exemplo, em 1918, Adolf Bingel relatou que tentou ser “o mais objetivo possível” ao comparar dois tratamentos diferentes de difteria (Bingel 1918). Ele avaliou se ele ou seus colegas poderiam supor quais pacientes tinham recebido qual tratamento: “Não confiei apenas no meu próprio julgamento, mas busquei as opiniões dos médicos assistentes do departamento de difteria, sem informá-los sobre a natureza do soro que estava sendo testado. O julgamento deles foi, portanto, livre de viés. Fico feliz de ver minhas observações verificadas independentemente, e sem dúvidas recomendo este método ‘cego’ para o propósito.” (Bingel 1918). Na verdade, nenhuma diferença foi detectada entre os dois tratamentos. Uma forte tradição de avaliação cega se desenvolveu na Alemanha, e foi sistematizada pelo farmacologista clínico Paul Martini (Martini 1932).
A avaliação cega em países de língua inglesa modernos começou, a princípio, quando os farmacologistas influenciados pela tradição alemã, assim como por um movimento nativo chamado de ‘quackbuster’ (caçadores de fraudes) que usava avaliações cegas (Kaptchuk 1998). Na década de 30, eles conquistaram a liderança no uso de controles com placebo em experimentos clínicos. Por exemplo, dois dos primeiros experimentos controlados do Conselho de Pesquisa Médica do Reino Unido (UK Medical Research Council) eram de tratamentos para resfriado. Teria sido muito difícil interpretar os resultados se o método ‘duplo cego’ não tivesse sido usado para impedir que os pacientes e os médicos soubessem quais pacientes tinham recebido os novos medicamentos e quais tinham recebido placebos (MRC 1944 ; MRC 1950). A defesa tenaz de Harry Gold da importância da avaliação cega parece ter tido uma influência fundamental nos Estados Unidos (Conference on Therapy 1954).
Cegar os observadores quando é impossível cegar pacientes e médicos
Às vezes é simplesmente impossível cegar os pacientes e os médicos sobre a identidade dos tratamentos comparados, por exemplo, quando tratamentos cirúrgicos são comparados a tratamentos com medicamentos ou com nenhum tratamento. Mesmo nestas circunstâncias, todavia, podem ser tomar medidas para reduzir a avaliação com viés dos desfechos dos tratamentos. Observadores independentes podem ficar alheios a quais tratamentos foram recebidos por quais pacientes. Por exemplo, no início da década de 40 um experimentou comparou pacientes com tuberculose pulmonar recebendo o então tratamento padrão – repouso – a outros pacientes que receberam, além disso, injeções do antibiótico estreptomicina. Os pesquisadores acharam que seria antiético injetar placebos inativos nos pacientes alocados para repouso simplesmente para atingir o ‘mascaramento’ dos pacientes e médicos que os tratavam (MRC 1948), mas eles tomaram precauções alternativas para reduzir a avaliação com viés dos desfechos. Embora houvesse pouco perigo de avaliação com viés do resultado principal (sobrevivência), a subjetividade poderia ter induzido a avaliação dos raios-X do tórax. Assim sendo, os raios-X foram analisados por médicos que não sabiam se eles estavam avaliando o resultado em um paciente que tinha sido tratado com estreptomicina ou somente com repouso.
Junto com a randomização, a avaliação cega, quando possível usando placebos, agora se tornou um dos componentes metodológicos cruciais dos experimentos controlados de tratamentos.