Por que as comparações devem tratar de dúvidas legítimas?

Uma grande quantidade de pesquisas são feitas mesmo quando não existem incertezas legítimas. Os pesquisadores que falham na condução de avaliações sistemáticas de testes passados antes de iniciar novos estudos às vezes não reconhecem (ou preferem ignorar o fato) que as incertezas sobre os efeitos do tratamento já foram tratadas de forma convincente. Isto significa que as pessoas que participam da pesquisa, às vezes, não têm o tratamento que poderia ajudá-las, ou recebem um tratamento que pode prejudicá-las.

TableO diagrama que acompanha este parágrafo e o seguinte mostra o acúmulo de evidência a partir de experimentos controlados realizados com o intuito de avaliar se os antibióticos (comparados com placebos inativos) reduzem o risco de morte pós-operatória em pessoas submetidas à cirurgia de intestino (Lau et al. 1995). O primeiro experimento controlado foi relatado em 1969. Os resultados deste pequeno estudo deixaram incertezas sobre a eficiência dos antibióticos, a linha horizontal representando os resultados transpõe a linha vertical que separa os efeitos favoráveis e desfavoráveis dos antibióticos. De forma bem oportuna, essa incerteza foi tratada em outros experimentos no início dos anos 70.

Conforme as evidência se acumulavam, entretanto, ficou evidente na metade dos anos 70 que os antibióticos reduziam o risco de morte após a cirurgia (a linha horizontal cai claramente ao lado da linha vertical, favorecendo o tratamento). Mesmo assim os pesquisadores continuaram a realizar estudos até o final dos anos 80. Metade dos pacientes que receberam placebos nestes novos estudos não puderam receber uma forma de tratamento que revelou reduzir o risco de eles morrem após a cirurgia. Como isto aconteceu? Provavelmente porque os pesquisadores continuaram com as pesquisas sem revisar as evidências existentes sistematicamente. Este comportamento permanece bastante comum na comunidade de pesquisa, em grande parte porque alguns dos incentivos no mundo da pesquisa – comercial e acadêmica – não coloca os interesses dos pacientes em primeiro lugar (Chalmers 2000).

Calcium Antagonists in StrokeOs pacientes e participantes da pesquisa também podem ser prejudicados porque os pesquisadores não fizeram uma revisão sistemática das evidências relevantes na pesquisa com animais antes de começarem a testar os tratamentos em seres humanos. Uma equipe holandesa revisou a experiência de mais de 7.000 pacientes que participaram dos testes de um novo medicamento para bloqueio do cálcio administrado em pessoas que sofreram derrame cerebral. Eles não encontraram nenhuma evidência que sustentasse o crescente uso deste medicamento na prática (Horn and Limburg 2001). Isso fez com que eles pensassem sobre a qualidade e os achados da pesquisa com animais que levou à pesquisa com pacientes. Suas revisões dos estudos com animais revelaram que nunca se sugeriu que o medicamento seria benéfico aos seres humanos (Horn et al. 2001).

A razão mais comum do porquê a pesquisa não trata de incertezas legítimas é o fato de os pesquisadores simplesmente não serem suficientemente disciplinados para revisar sistematicamente as evidências existentes relevantes antes de iniciar novos estudos. Porém, às vezes, há razões mais sinistras. Os pesquisadores podem estar cientes das evidências existentes, mas eles querem planejar estudos para assegurar que suas próprias pesquisas produzirão resultados favoráveis para tratamentos específicos. Geralmente, mas em sempre, isto ocorre por razões comerciais (Djulbegovic et al. 2000; Sackett and Oxman 2003). Esses estudos são deliberadamente concebidos para serem experimentos não controlados de tratamentos. Isto por ser feito pela ocultação de um tratamento de comparação reconhecido por ajudar os pacientes (como no exemplo dado acima), ou pela administração de tratamentos de comparação em pequenas doses de forma inapropriada (de modo que não funcionem tão bem), ou em doses muito altas (de modo que tenham mais efeitos colaterais indesejados) (veja o comentário de Mann e Djulbegovic). E, também pode resultar do acompanhamento dos pacientes por um período de tempo muito curto (deixando passar desapercebidos os efeitos tardios do tratamento) e do uso de medidas de desfecho (“substitutas”) que têm pouca ou nenhuma correlação com os desfechos que importam para os pacientes.

Os leitores deste artigo podem ficar surpresos ao saber que os comitês de ética na pesquisa, estabelecidos durante as últimas décadas para garantir que a pesquisa seja ética, têm feito muito pouco para influenciar esta negligência nas pesquisas. A maioria destes comitês tem desapontado as pessoas que eles deveriam proteger, porque não exigem dos pesquisadores e patrocinadores procurando a aprovação de novos experimentos uma revisão sistemática das evidências existentes (Savulescu et al. 1996; Chalmers 2002). A falha dos comitês de ética em proteger os pacientes e o público de maneira eficiente, enfatiza a importância de melhorar o conhecimento geral sobre as características dos experimentos controlados de tratamentos médicos.